“Denunciei a fome como flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens”. Assim o sanitarista pernambucano Josué de Castro, médico, nutrólogo, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor, entre outros títulos conquistados em uma vida rica em estudos e pioneirismo, definiu sua própria obra. Um pensador e ativista que dedicou sua trajetória ao combate à fome e às desigualdades sociais e que se preocupava com o meio ambiente muito antes dos movimentos ambientalistas das décadas de 60 e 70. Um cidadão do mundo, que não deixava de ter um olhar atento para suas raízes no Brasil e no Nordeste.
O conjunto de seu trabalho é tão relevante e reconhecido internacionalmente que Josué foi indicado três vezes ao prêmio Nobel. Em 1954, concorreu ao Nobel de Medicina, e nos anos de 1963 e 1970, ao Nobel da Paz. Seu livro Geopolítica da Fome ganhou em 1952 o prêmio Franklin Delano Roosevelt da Academia de Ciências Políticas dos Estados Unidos. Outro título, Geografia da Fome, foi traduzido em mais de 25 países, por denunciar a fome como uma consequência da má distribuição das riquezas, e não da escassez de alimentos no mundo.
Homem caranguejo
Josué de Castro nasceu no Recife, em 5 de setembro de 1908. Uma referência à sua infância pode ser encontrada no prefácio do seu livro Homens e Caranguejos (de 1967): “O fenômeno da fome se revelou espontaneamente nos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade de Recife. Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite e tantos outros. Esta é que foi a minha Sorbonne”, escreveu. A convivência tão próxima com o mangue fez desse ecossistema um elemento importante em sua reflexão. O menino Josué já comparava os moradores do mangue aos caranguejos, ambos cobertos de lama e famintos.
Em 1935, em O ciclo do caranguejo, contou sobre a fuga de uma família dos efeitos da seca do sertão nordestino. No Recife, se instalam no mangue, onde “o terreno não é de ninguém. É da maré.”
“Agora, quando o cabloco sai de manhã para o trabalho, já o resto da família cai no mundo. Os meninos vão pulando do jirau, abrindo a porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a água barrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os braços de lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braços atolados na lama, a família Silva está com a vida garantida. Zé Luís vai para o trabalho sossegado, porque deixa a família dentro da própria comida, atolada na lama fervilhante de caranguejos e siris”.
Sua reflexão sobre o “homem caranguejo” deu origem a diversos movimentos, entre os quais se destaca o Manguebeat, liderado pelo músico Chico Science. Um artista, também pernambucano, que reverberou o pensamento de Josué de Castro em várias de suas músicas, como em Da lama ao caos. Para a socióloga e vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz, Nísia Trindade, Chico Science fez uma releitura da temática de Josué de Castro, trazendo a questão da perda dos manguezais e da continuidade de situações de desigualdade, tanto no Recife como em todo o Brasil. “A partir do Recife, Chico Science retoma o pensamento de Josué para falar para o mundo”, destaca a socióloga.
(Fotos: Reprodução Projeto Memória)
"Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça
Peguei um balaio, fui na feira roubar tomate e cebola Ia passando uma véia, pegou a minha cenoura 'Aí minha véia, deixa a cenoura aqui Com a barriga vazia não consigo dormir'
E com o bucho mais cheio comecei a pensar Que eu me organizando posso desorganizar"
(Chico Science & Nação Zumbi)
Preguiça ou fome
Após concluir a faculdade de Medicina no Rio de Janeiro, Josué retornou à capital pernambucana e começou a trabalhar no início da década de 30 como médico de fábrica, vivenciando uma realidade que alimentou suas reflexões e levou à realização, em 1932, do seu Inquérito Sobre as Condições de Vida das Classes Operárias no Recife. Pesquisa em que apontou que a “preguiça”, levantada como característica dos brasileiros mestiços, negros e índios, devia-se não às origens étnicas — como era o pensamento corrente naquele período — mas,sim, às condições de vida e principalmente à fome.
“Comecei, também, a trabalhar numa grande fábrica e a verificar que os doentes não tinham uma doença definida, mas não podiam trabalhar. Eram acusados de preguiça. Disse aos patrões: sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-los porque sou médico e não diretor daqui. A doença desta gente é fome. Pediram que eu me demitisse. Saí. Compreendi, então, que o problema era social. Não era só do Mocambo, não era só do Recife, nem só do Brasil, nem só do continente. Era um problema mundial, um drama universal“.
O inquérito de Josué relacionou pela primeira vez a produtividade do trabalhador à sua alimentação, e examinou suas condições de vida, de moradia e seu salário. Para Nísia, o sanitarista foi mais longe que outros pensadores de sua época, que já questionavam a ideia da mestiçagem como definidora de um obstáculo para o desenvolvimento do país. “Ele avançou no sentido de apontar a fome como uma questão de política social. Isso está iniciado em vários de seus livros e depois se torna uma formulação mais madura”, explica.
O trabalho do Josué — e também sua participação nos primeiros movimentos em prol do estabelecimento desse benefício — foi uma das bases para a criação do salário mínimo, em 1940, por decreto-lei de Getúlio Vargas. Professor do Departamento de Nutrição da Universidade de Pernambuco (UFPE), Malaquias Batista Filho, estudioso da obra de Josué de Castro, considera o salário mínimo como a mais importante política que o Brasil adotou em termos de segurança alimentar, até hoje. “Não apenas pelo que significou naquele momento como fato histórico, mas, sobretudo, porque ele abriu um processo que — muito valorizado nestes últimos dez anos — fez com que grande parte da classe trabalhadora do Brasil desse um salto em termos de patamares (sociais)”. Malaquias lembra também que Josué foi fundador das principais instituições de alimentação criadas no governo Vargas, como o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS).
Mapa da fome
Durante todo esse período, no início da década de 40, o projeto do livro Geografia da Fome estava sendo formulado. Um livro fundamental, que construiu uma explicação da fome de natureza geográfica, social, biológica, sociológica e histórica. Nele, Josué deixou claro que a situação da fome no país não poderia mais ser atribuída a fenômenos naturais. A área do sertão nordestino, por exemplo, foi caracterizada pelas secas periódicas. Porém, mais do que o clima, o maior problema da região era a falta de recursos, de meios de transporte e de políticas públicas, indicou ele.
Assim, Josué combateu a explicação de que a fome no mundo era efeito do crescimento demográfico, hipótese formulada pelo economista inglês Thomas Malthus no século 18, para quem enquanto as populações cresciam em progressão geométrica, a produção de alimentos crescia em progressão aritmética — o que justificaria a necessidade de limitar o crescimento demográfico.
“Está provado que a natureza não é mesquinha e que os seus recursos são mais do que suficientes para alimentar bem todo o efetivo humano por longos anos a vir. Quem tem sido mesquinha é a condição humana, ou melhor a condição humana de nossa civilização.”
Em Geografia da Fome, o país foi dividido em cinco regiões, a partir dos padrões nutricionais da população de cada uma dessas áreas. O mapa desenhado por Josué era de fome na zona da mata nordestina, com a monocultura, gerando um dos piores quadros nutricionais do país na época; no sertão e semiárido, havia o fenômeno da seca associado à fome epidêmica; em Goiás e parte do Centro-Oeste, a carência alimentar estava associada à alta incidência do bócio; no Sul/Sudeste havia outras carências alimentares, como a falta de vitamina D.
“Esse livro mostra que o principal problema do Brasil estava no enfrentamento dessas condições adversas, das quais a fome era uma expressão”, considera Nísia, para quem a grande contribuição desse trabalho foi a forma como o autor colocou em evidência um projeto de país e as possibilidades de desenvolvimento. “Esse modo de pensar, de olhar, é a grande atualidade dessa obra”.
Josué de Castro associava o combate à fome à paz, em uma época em que a questão social ainda era considerada como assunto de polícia. Também nesse aspecto, Josué não ficou apenas no campo das ideias, ocupando a presidência do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o braço da ONU para alimentação, por dois mandatos — de 1952 a 1956. Nesse posto, ele defendia que a FAO deveria se voltar para os países que foram fruto de exploração colonial imperialista e cobrava uma agenda política mais ampla, que colocasse a fome como uma questão fundamental para a agenda da paz. “O que não acontecia nem no âmbito da própria FAO, em que o foco estava na maioria das vezes em políticas agrícolas e questões comerciais entre os países, em vez de realmente encarar a questão da fome como política central”, esclarece Nísia.
Ao sair da FAO, em 1957, Josué de Castro fundou, juntamente com o padre católico francês Abade Pierre — criador da rede de abrigos Emaús — a Associação Mundial de Luta Contra Fome (Ascofam), visando sensibilizar o mundo para o problema da fome e da miséria.
Desenvolvimento humano
Em 1962, Josué de Castro era embaixador do Brasil na Organização das Nações Unidas, em Genebra, mas com o golpe militar de 1964 foi destituído do cargo e posteriormente teve seus direitos políticos cassados por 10 anos. Passou a viver em Paris, de 1964 até 1973. Fundou, em 1965, o Centro Internacional para o Desenvolvimento, e foi designado pelo governo francês como professor estrangeiro no Centro Universitário Experimental de Vincennes (Universidade de Paris VIII), onde ele trabalhou até sua morte, em 1973.
“A ideia que ele defendia, do chamado desenvolvimento humano, se tornou o ponto forte, a doutrina dos estudos dessa instituição”, destaca o professor Malaquias. “Não se pode esquecer que se trata de um brasileiro que morreu no exílio, sem a possibilidade de voltar ao seu país, um fato que demonstra a importância da construção democrática para que projetos como o de Josué de Castro efetivamente possam ser seguidos”, conclui Nísia.
Centro Josué de Castro
Médicos intérpretes do Brasil. Hucitec, 2015
Projeto Memória Josué de Castro
Autor:
Solange Argenta* REVISTA RADIS REPORTAGENS
*Da Fiocruz Pernambuco. As informações sobre a vida e obra de Josué de Castro foram apresentadas na conferência Josué de Castro: intérprete do Brasil, em setembro, na Fiocruz Pernambuco, em parceria com o Centro Josué de Castro.
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